29 setembro, 2006

A dor de ser brasileiro

Antes que comecem a ler vou logo avisando que esse texto não foi feito por nenhum membro desse blog, e sim pelo grande Fausto Wolff e foi publicado há uns dois meses atrás no JB. Como domingo é dia de eleição resolvi publica-lo aqui. Meu sonho (e vai continuar sendo sonho) é de que todos os brasileiros pudessem ter a oportunidade de lê-lo antes de votarem. E que algum letrado de bom coração lesse para os analfabetos.

O texto é o que segue. O titulo é o que esta como titulo mesmo, mas eu repito com prazer: “A dor de ser brasileiro”


Era uma vez um homem e, portanto, um vitorioso. Na corrida contra bilhões de espermatozóides, ele chegara na frente. Era vitorioso também porque durante a gestação sua mãe não sofrera nenhuma queda e tampouco adoecera. Ele nascera bonito e normal. Um homenzinho que tinha todo o mundo para desfrutar. Beleza pura, mas nem tanta. Logo descobriu que nascera preto, pobre e brasileiro.

O leitor que acha que não temos racismo no Brasil reclamará, mas reclamará errado. Nosso racismo é tão grande que não é privilégio de pretos ou mulatos. Ele atinge os pobres em geral, desempregados ou não. Claro que os pretos são suas maiores vítimas. Quanto mais negros, mais padecem, e a eles sobrarão sempre os últimos lugares, os empregos mais humildes e mais mal pagos.

Para os pretos que não quiserem viver infelizes só há uma saída: precisam enriquecer. Para enriquecerem terão de fazer dez vezes mais esforço do que os brancos. Nessas tentativas, pois assim quer um sistema louco e adorador de ídolos, perde-se o caráter e ganha-se em subserviência; perde-se a naturalidade e ganha-se um sorriso cortado à faca no rosto.

Junto com a naturalidade e a posição ereta ganha-se também uma espinha dorsal de borracha. Mas João, embora soubesse disso, não deixaria que acontecesse com ele. Os pretos, se enriquecerem muito, ficarão brancos como Pelé. O preço que terão de pagar por isso: só terão amigos brancos e, na maioria, mal-intencionados. Como afastaram-se dos amigos, estes também se afastaram deles. Tornaram-se párias com uma identidade no bolso e outra, a verdadeira, no coração.

A mulher preta e pobre, caso seja bonita, poderá tentar sua independência como cantora, atriz, modelo, mas há muita competição nesse universo artificial. Por outro lado, o homem preto que vence na vida não sente que é preto. Nos filmes policiais americanos, os racistas até se divertem com isso. Colocam um preto sempre como chefe dos detetives. Irritado, ele vive dando os maiores esporros nos seus detetives brancos. Mas seu papel é pequeno e, na vida real, a coisa é outra. Alguém aí da platéia poderá argumentar que Michael Jackson ficou branco e ainda dá a sorte de ser adorado por centenas de milhões de pobres negros e brancos.

Não creio que meu personagem, João Souza da Silva, almejasse ser amado como Michael Jackson ou como seu ídolo, Lula. João, por sinal gaúcho e nascido em 1958, queria trabalhar e ser feliz. Seu pai era leiteiro e a mãe era de prendas domésticas. Tinha irmãos e irmãs mais moços e mais velhos. Viviam com sacrifício, mas não faltava comida, escola, bebida e nem teto.

À medida que cresciam, as crianças ajudavam no orçamento. João Souza da Silva engraxava sapatos e vendia jornais enquanto fazia o primário. Gostava muito de ler e queria fazer o vestibular. A realidade, porém, mostrou-lhe o seu lugar e ele fez o curso de contabilidade. Apaixonou-se por uma jovem colega dois anos mais moça. Como viviam numa época em que o sexo entre adolescentes não só era moda como era incentivado pelos meios de comunicação, a carne falou mais alto.

Bom nome para uma novela das oito: A carne falou mais alto, com Vera Fischer. Falou tão alto que sua namorada engravidou. Como se amavam, ele fez o que qualquer rapaz direito faria: casou-se com ela. Foram morar com a família dela, que queria um casamento melhor para a filha. Durante anos João trabalhou nas mais diversas áreas até que, finalmente, passou num concurso para um banco particular. Com o salário pôde alugar um apartamento no subúrbio.

João continuava noite afora trabalhando como chofer de táxi. Trabalhava das seis da tarde às três da manhã. Poderia dormir nos fins de semana, mas, no sábado, tinha reunião no PT local, onde era segundo-secretário. E domingo era o dia em que não precisava pagar a diária ao vizinho, dono do carro. As duas filhas estavam na faculdade. Uma fazia jornalismo e a outra, geografia. Como todo pobre que se preza, não queria que as filhas passassem o que ele passara e por isso não as deixava trabalhar.

Lula se elegeu, mas as coisas não melhoraram. Seu salário continuou congelado e os vizinhos não queriam mais saber do futuro, pois este já se apresentava em toda a sua cruel realidade naquele subúrbio afastado de Porto Alegre. Seis meses antes fora demitido na agência em que trabalhava. Mandaram-no procurar um advogado. Envergonhado, nada contou à família. Logo gastou as poucas economias e teve de pedir dinheiro emprestado. Para esquecer-se do que devia e das mentiras passou a beber. Uma noite, verificou que se tornara impotente e, no dia seguinte, deu um um tapa na filha, que lhe disse que ele cheirava a bebida. Bebeu no Centro até o fim do expediente, mas, em vez de pegar o ônibus para casa, pegou o ônibus para a rodoviária.

No Rio passou três dias sem comer nada, até ser levado pela polícia para um abrigo de indigentes, de onde fugiu. Imagino como deve ter sido duro para ele pedir esmolas. Ele sabia que não era um mendigo, era um bancário, um trabalhador. Poderia ter sido até mesmo um doutor, se não precisasse ajudar a família. Agora era parte da legião, mas tomava banho todos os dias e mantinha seu paletó e gravata, bem como seus documentos em dia.

Não queria ser confundido com louco algum. Ele estava aleijado por dentro, não sabia que já desistira e vagamente lembrava da família, mas ainda olhava nos olhos das pessoas como se não fosse um mendigo. Como se dissesse: "Apesar do que vocês possam pensar, eu sou um homem e não um cachorro". Só quem já necessitou sabe quão terrível é a dor daquele que necessita; a dor moral que se torna física e faz enlouquecer.

João Souza da Silva, o trabalhador negro e bancário, acabou na Barra da Tijuca no dia da inauguração do Fashion Rio. Ele do lado de fora e do lado de dentro algumas das mulheres mais belas e alguns dos homens mais ricos do mundo. Na Barra da Tijuca - um inferno de samambaias, vidraças fumé, drogas e ar-condicionado - não tem esquina e os sinais de trânsito surgem eventualmente a cada dois mil metros. Isso ocorre porque a Barra não foi feita para pedestres. Foi feita para caçadores ricos. E um desses caçadores do volante matou João Souza da Silva, homem de bem, negro, brasileiro, desempregado, como milhões de outros brasileiros.

João foi morto por um canalha que nem parou para ver em que batera. Morto ficou durante cinco horas sob o sol brabo. Morreu numa terça-feira de tarde, enquanto ladrões riquíssimos insultavam-se mutuamente no Congresso. Enquanto ladrões riquíssimos olhavam excitados os corpos de modelos adolescentes no Fashion Rio. Enquanto Olavo Setúbal, dono do Banco Itaú, dizia a um repórter: "Um dos maiores prazeres do mundo é poder viajar pelo mundo sem obrigação de trabalho".

As jovens modelos que já haviam desfilado resolveram tomar refrigerantes do lado de fora do shopping. A 50 metros de distância viram uma pequena multidão e dirigiram-se até ela. A mais bonita das modelos aproximou-se do corpo, jogado na calçada.

Era o nosso João, ainda belo, ainda bem vestido. Olhos fechados, expressão aliviada no rosto. Só era possível saber que estava morto por causa do sangue que saía do seu ouvido. Ela, a modelo, ex-miss, teve uma reação de leitora de contos de fada. Enquanto duas lágrimas desciam pelo rosto de menina a quem haviam obrigado ser mulher antes do tempo, desde que via os programas da Xuxa, exclamou para todos e para ninguém:

- Se ele fosse um príncipe já o teriam levado.

O mais irônico nisso tudo é que ele era um príncipe.

Fausto Wolff