19 julho, 2008

O choro de alegria


Por João Henriques


As últimas capas de jornais fizeram boa parte do Rio de Janeiro chorar. Carregada nas tintas vermelhas e negras (mas que não simbolizavam a vitória do Flamengo), elas anunciavam a morte banal de inocentes na guerra civil de uma cidade partida. O pior dessas mortes é que elas só aconteceram por culpa daqueles que deveriam evitá-la. Nossos guardiões da ordem social passaram a apontar armas contra crianças voltando de uma festa, um jovem que dançava para celebrar a vida e um trabalhador que estava sendo vítima de um homem que entrou para o lado negro da força. Como se fosse uma revanche - mas não é - esses mesmos assassinos também experimentaram o amargo sabor da morte cruel.


Tudo isso serve para falar de uma morte que não traz a tona um sentimento de raiva, dor ou revolta. A morte que motiva esse texto tem um efeito contrário. Hoje, 19 de julho de 2008, às 16h45, Dercy Gonçalves encerrou sua estadia de 101 anos, (ou 103) no planeta Terra. Sua despedida deixa para os ainda vivos um sentimento de nostalgia carregado de alegria. De alguém dedicou sua vida a provocar o sorriso de milhões de brasileiros. Sujeitava-se até a fazer piada de sua longevidade, como se a morte tivesse deixado ela de lado. Literalmente, Dercy brincava com a idéia de morrer. E para quem acha isso um humor negro, de mau gosto, ela tinha na ponta da língua uma das mais belas palavras de baixo calão da língua portuguesa. Quem não gosta do jeito Dercy Gonçalves de ser que vá tomar naquele lugar que todos sabem muito bem qual é.


Pode parecer grosseiro o que vou dizer aqui. Mas a ida de Dercy para um plano superior veio no momento certo. Os últimos acontecimentos nos levaram a chorar por uma morte que pegou inocentes e pessoas cheias de vida da forma mais estúpida possível. Para aliviar nossos corações Dercy, nos presenteou com uma morte que nos traz recordações que carregam sentimentos de alegrias e boas gargalhadas. De alguém que não se intimidou pelas normas de comportamento de uma burocracia besta, que só deixa o cotidiano cada vez mais sem graça.


De lamentações ficam apenas duas coisas. Há de que Dercy não vai mais nos presentear com novas cenas memoráveis de humor e de que seu ensaio para a Playboy ficará apenas no imaginário do povo brasileiro. Tem tudo para virar uma lenda, como a da Mula-sem-Cabeça e a do Saci-Pererê. Daqui a 100 anos os avôs vão contar para seus netinhos sobre memorável Playboy de Dercy Gonçalves.